quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Tantras Musicais


Não estou inspirada para escrever, creio que isso não fará lá grande diferença, uma postagem a menos entre as tantas que ninguém lê. Mas, enfim, é quase sempre assim que começam as minhas crônicas, e talvez justamente por isso elas tenham uma qualidade um tanto quanto duvidosa.
Enquanto eu desperdiçava algumas linhas nesse último paragrafo, veio-me uma imagem à cabeça: aquele piano armário, de pintura marrom fosca e um sonoridade que não se decide entre aveludada e metálica. Não é apenas um piano velho reformado com algumas notas desafinadas, para mim ele significa algo que soa meio que como a minha vida inteira. Porque ele me acompanha a vida inteira.
Já tivemos brigas terríveis, em que eu o abandonei porque pensei que não seria capaz de dar-lhe o merecido carinho. Ele, por sua vez, também já me agrediu, tudo culpa daquela horrível tendinite estranha, que me doía a mão direita. Eu já o critiquei muito, detestava quando ele se recusava a fazer funcionarem aquelas teclas mais baixas, e xingava-o com fervor quando percebia como alguma nota desafinava mais do que rápido.
E assim nos tornamos mais um desses inúmeros casais que vivem a briga, a paixão e o descaso mas que apesar de tudo continuam juntos. Não acho que ele seja o amor da minha vida, talvez porque eu não mais acredite nesse tipo de ilusão, talvez porque eu saiba que outras coisas que me aprecem mais imediatas - e para as quais eu tenho maior aptidão - me afastam do contato diário, físico, que eu deveria dar-lhe. Nada disso, porém, anula a sua grande importância: mulher alguma esquece a sua "primeira vez"!
Horas sentada, a música talvez pudesse lembrar sangue pingando. Prazer e incômodo, uma coisa contida na outra. Mas eu insistia, tamanha paixão não me permitiria parar no meio da caminho. Foi então que entendi que certas coisas a gente só tem quando se esforça por elas. Se eu não insistisse, se não refizesse as mesmas passagens várias vezes, se não aguentasse o barulho insuportável do metrônomo, não teria o gosto de ver terminadas as peças que eu tanto e tanto queria executar. O sacrifício da prática levou-me ao que eu chamaria de tantra maravilhoso do gozo musical!
Assim foi que entendi algo que hoje me norteia. Demorei, muito mais do que gostaria, para poder dizer "toco piano", mas hoje encho a boca para pronunciar isso. Demorei, muito mais do que gostaria, e nessa demora insisti, muitos mais do que pensei que precisaria. Insisti e consegui! E o que me importa o resto?
Será que a vida encurralou-se antes mesmo de existir porque a explosão de gases pós big bang lhe dizia que atmosferas tóxicas não lhe seriam simpáticas? Ora, e onde estaríamos agora, se assim fosse? Todo o universo abraça a si mesmo em uma corrente de tentativas e esforços. Santas são as lagartixas que desafiam a gravidade escalando as paredes da minha casa! Santos são os pássaros que só com penas e asas impulsionam-me metro e metros acima do marasmo do chão!
O que poderia ser e não foi, passado! Não temos a clorofila das plantas mas podemos cantar um blues e uma saudade, beber de um chop e de Chopin. E que não me venha Schopenhauer dizer que tudo isso é vão! Gratuito o meu piano já ensinou que não é - vale a pena insistir em um olhar para dar a boca o gosto de um beijo. Vale a pena gritar de indiganação quando tudo dança pateticamente em compassos de injustiça. Vale a pena pegar um resfriado por correr na chuva ou piorar a dor de garganta para lamber um sorvete de creme.
Talvez, se não fosse essa amostra do quanto é preciso ir contra tudo o que for a inércia que não nos permite o suor. Não fossem essas tardes cheias de exercícios chatos da técnica pianística, eu hoje não conseguiria muitas coisas. Talvez não chegasse às arcadas, talvez não aprendesse a dançar, talvez não escrevesse da minha própria vida muito do que ela tem de poesia.

Sei que isso tudo soa como auto-ajuda. E eu, particularmente, não gosto desses livrinhos petulantes, que tanto se acham donas da verdade. Da verdade dos outros, dessa eu não sei nada. Da minha, conheço alguma coisa que hoje agarro com unas e dentes. Pode ser que amanhã eu mude de idéia, mas isso já é tema para outra crônica, para outro momento em que eu não tenha mais o que falar e me venham essas divagações à cabeça!

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